História sobre liberdade II

f_276785Era uma vaca solitária. Teimosa. Desde filhote já sustentava ideias revolucionárias. Não estava de acordo com isso de viver sob o controle de um vaqueiro. E a cerca era tão baixa, por que ninguém pulava? Sempre tentara inutilmente provocar um motim para a fuga coletiva, mas ninguém comprava a ideia. Seus pais a observavam e abanavam a cabeça, em reprovação. O que fizeram de errado para que sua filha saísse daquele jeito?

No entanto, o primeiro ato real de rebeldia foi quando decidiu se recusar a dar seu leite aos humanos. Ela não era obrigada, o leite era seu e não tinha por quê cedê-lo assim gratuitamente. Quando o vaqueiro apertava suas tetas, ela fazia toda a força e segurava o leite. Quando o homem insistia, a rebelde resolvia o problema com um coice bem dado. Também já tentou impedir a ordenha de suas companheiras. Esperava o recipiente ser enchido, aproximava-se como quem não queria nada, e chutava o balde. As vacas se queixavam: “Se você não quer dar seu leite, o problema é seu. Agora não venha nos prejudicar, respeite nosso trabalho! Veja só que desperdício!” E a rebelde respondia, zangada: “Agora não adianta mais chorar sobre o leite derramado!”

Por isso essa vaca era solitária. Ela queria sair daquela situação da fazenda, ela queria liberdade (ou aquilo que ela imaginava ser a liberdade). Mas ninguém a compreendia. Estavam todos muito satisfeitos com a vida que levavam. Então, certa vez, decidiu que seria livre de qualquer maneira, mesmo que fosse sozinha. Aproveitando o horário da sesta, enquanto todos dormiam, ela se equilibrou sobre a cerca baixa e a pulou. Satisfeita por descobrir essa sua capacidade, saiu rebolando sem direção.

Em poucos minutos já havia se afastado muito do sítio onde vivia. Começou a caminhar à beira da rodovia, sonhando poder viver em qualquer lugar, sem dar satisfação a ninguém. Em pouco tempo de caminhada já era possível avistar casas e prédios. Estava na cidade! Aquele era o seu lugar. Ela havia escutado que a cidade é o lugar das oportunidades. Por que perdeu tanto tempo dentro daquelas quatro cercas? Desviou seu caminho da rodovia e entrou em uma rua. Para ela aquilo era como um labirinto. Uma rua levava a outra, que levava a outra, e pareciam todas iguais. Mas não havia problemas. Não importava em que rua estivesse, o importante era fazer o que lhe desse na telha. A alegria era tanta que começou a correr. Para cá e para lá.

Foi nesse corre-corre que aconteceu a tragédia. A vaquinha rebelde tropeçou em uma pedra e foi rolando barranco abaixo até cair no quintal de uma casa, que estava abaixo do nível da rua. Levantou-se atordoada, ainda sem entender direito o que estava acontecendo. Procurou a saída mas se viu em um pátio estreito e não sabia mais como sair dali. “E agora?” pensou. “Como vou me livrar dessa? Por onde eu saio?” Olhou ao seu redor, tentando encontrar uma ideia. Olhou para cima. Sorriu. Claro! Se ela veio de cima para baixo, agora deveria fazer o sentido inverso. Ali estava o telhado, era só subir e caminhar até a rua outra vez!

Escalando uma coluna, chegou no alto. Porém, logo nos primeiros passos, o telhado não suportou seus quase 600 quilos e rompeu. A vaca caiu e foi parar dentro de uma sala de estar. Bateu com a cabeça na parede e quebrou um dos seus chifres. Assustou-se ao ver sangue na parede, seria mesmo dela? Começou a se contorcer, mas era muito pesada para se levantar sozinha. Esbarrou na estante e derrubou a televisão, esbarrou também na mesinha do computador. Quando se deu conta, tudo que havia no chão estava estilhaçado. “Como vim parar num lugar tão apertado? Nunca imaginei que os humanos vivessem mais presos que a gente!” Depois de derrubar praticamente tudo que havia na sala, ela se levantou e seguiu procurando a saída. Foi quando entrou no banheiro, mas sem sucesso. E que lugar pequeno, como dar meia volta e sair? Suas patinhas começaram a se voltar na direção da porta, quando ela se deparou com uma mulher, que gritava desesperada: “Meu Deus o que é isso?!” “Quem trouxe esse bicho para o meu banheiro???” A vaquinha se ofendeu: “Bicho não, minha senhora. Cuidado com sua língua ou vai se ver com a minha que é muito maior!” Na tentativa de se apressar para atacar, escorregou e caiu de novo. Só que desta vez seu peso arrancou o vaso sanitário do lugar e danificou a pia. A mulher não sabia o que fazer, e a vaca, estendida pelo chão do banheiro, era orgulhosa demais para pedir ajuda.

Em pouco tempo apareceram homens com cordas para amarrá-la. Levaram-na outra vez ao quintal, e ali se esticou, pensando: “Saí do sítio atrás da liberdade. Agora estou amarrada por um bando que, por própria vontade, vivem em casas mais apertadas do que o curral.” Os homens ainda tentavam fazer com que se levantasse, mas ela era ferrenha: “Se querem me tirar, então que me carreguem. Não é por minhas patas que vou sair daqui.”

Chegaram o Corpo de Bombeiros, a equipe de zoonoses e a Defesa Civil, além de um monte de curiosos fazendo festa com o evento tão inesperado. Ela foi levada em caminhonete para o centro de zoonoses. Ainda no mesmo dia apareceu o dono: Um vaqueiro usando botas, calça jeans, camisa xadrez e um chapéu de abas largas. “Agora pode deixar essa vaca rebelde comigo, porque ela é minha!” O olhar da vaca para o dono era um misto de frustração pelo fracasso do plano, vergonha e reconhecimento de que ela não tinha opção melhor do que voltar com ele. O dono, voltando-se para o animal, disse-lhe: “Quem foi que te disse que a vida aqui fora é mió? Agora ocê vai entender que a verdadeira liberdade é debaixo dos meu cuidado.” Para o espanto de todos, o vaqueiro a levantou sozinho e a colocou sobre os ombros, como se fosse uma ovelhinha e saiu contente, levando-a de volta para o sítio.

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